Violência no campo é discutida em audiência pública que reuniu órgãos de Justiça e lideranças de comunidades rurais e tradicionais do Maranhão

    “Vai fazer um mês que eu saí de casa e não consegui voltar ainda, por medo. Hoje a gente está aqui apelando para que isso seja resolvido”, revelou a trabalhadora rural, cuja identidade é mantida em sigilo porque ela faz parte do programa de proteção a pessoas ameaçadas de morte no campo, no Maranhão. Ela é do município de Formosa da Serra Negra, uma das regiões onde hoje mais há casos de conflitos agrários no estado.

    O depoimento da trabalhadora agrícola foi compartilhado em meio a sentimentos como tristeza e indignação, diante de outros relatos de ameaças, perdas, desrespeito à vida e ao modo de viver das comunidades tradicionais, rurais, quilombolas e indígenas do Maranhão, durante a primeira audiência pública realizada em conjunto pela Frente de Proteção Integrada do Maranhão (FPIMA), que é formada por quatro órgãos do sistema de Justiça: Defensoria Pública do Estado (DPE), Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público do Estado (MPE) e Ministério Público Federal (MPF).

    O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) também participou como correalizador do evento, que contou com as parcerias da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag).

    A audiência pública foi realizada na sede da DPE/MA, em São Luís, e transmitida pela internet, nas plataformas dos órgãos realizadores do evento. “Essa é uma matéria prioritária aqui na DPE. Esse, com certeza, é um dos eventos populares com mais pessoas em nossa casa, graças à importância, à atualidade e à atuação que a gente vê das lideranças comunitárias e também dos representantes dos órgãos aqui presentes, bem como da sociedade civil. A gente quer ser sempre uma instituição resolutiva. E se hoje essa audiência está sendo realizada aqui, a gente espera que as próximas sejam realizadas nas comunidades, incluindo a presença dos chefes de poder”, destacou o defensor público-geral do Maranhão, Gabriel Furtado.

    “A Defensoria atua preventivamente, pela via da regularização fundiária, da articulação de políticas públicas da reforma agrária, e também do ponto de vista da provocação às entidades de controle, para investigar os fatos e adotar as providências de responsabilização dos culpados. São crimes de ameaça, homicídios e crimes ambientais, praticados contra as pessoas e contra o modo de vida nas comunidades rurais e tradicionais”, enfatizou o defensor público Jean Nunes, do Núcleo de Direitos Humanos da DPE/MA.

    O defensor público federal Yuri Costa, que também é vice-presidente do CNDH, reforçou a necessidade de se realizar essa escuta articulada de maneira interinstitucional: “A audiência pública de hoje se soma a uma série de outras atividades organizadas por entes públicos e entes da sociedade civil. A ideia aqui é fazer o levantamento de casos e necessidades, cobrar as instituições presentes para que atendam às demandas aqui colocadas; e nós, que fazemos parte dos órgãos realizadores, a partir dos resultados aqui obtidos, cobraremos atuações efetivas relacionadas à pauta da violência no campo”.

    Visibilidade

    Só este ano, já foram registrados sete assassinatos, segundo a Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (Fetaema), que identificou um total de 204 pessoas ameaçadas de morte nas áreas rurais do estado, em especial, naquelas que são alvos de conflitos agrários reforçados pelo avanço da fronteira agrícola da soja, além da atividade de mineradoras sobre a porção amazônica do Maranhão. Só para se ter uma ideia, no primeiro trimestre deste ano, foram registradas cerca de 92 ocorrências ocasionadas por disputas de terra.

    Uma dessas disputas agrárias levou ao caso mais recente de assassinato no estado, ocorrido em abril deste ano, na comunidade Jacarezinho, em São João do Soter. O líder quilombola Edvaldo Pereira Rocha, de 52 anos, foi assassinado com vários tiros, na rodovia MA-127. Testemunhas disseram que os assassinos fugiram em uma motocicleta. Apesar de um suspeito ter sido preso, no início de junho, a família ainda aguarda a identificação e a punição de quem está por trás da execução.

    Edvaldo era presidente da Associação de Moradores de Jacarezinho, que há anos vinha lutando pela titulação da comunidade quilombola. Presente na audiência, uma das filhas do quilombola também se manifestou: “A gente pede que isso não fique impune, porque são outras pessoas que estão sofrendo ameaças, e a qualquer momento pode acontecer de novo”.

    As estatísticas dos últimos anos revelam um histórico de violência crescente e, nesse cenário, chama a atenção o perfil das vítimas, cuja maioria é formada por lideranças indígenas, sem-terra, posseiros, quilombolas, assentados de reformas agrárias, pequenos proprietários, quebradeiras de coco babaçu e apoiadores da luta pela terra, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

    “É a nossa gente que está passando por essa situação. A morte de seu Edvaldo não pode ficar impune. Não devemos só buscar responsabilizar quem fez isso com ele, mas atuar institucionalmente para evitar que novos casos sejam registrados. É essa articulação que estamos propondo aqui”, ressaltou a procuradora federal Anne Caroline Neitske.

    Foi em busca de dar visibilidade a todas essas questões, encontrar respostas e propor ações efetivas que a audiência pública foi realizada, com participações de grande relevância, como o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, representado por Fabíola Corte Real, e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos estados Americanos (OEA), representada por Jessica Tueller. O presidente do CNDH, Darcy Frigo, também, participou da audiência. As três falas ocorreram de forma remota.

    “Nós, do MPE, temos uma grande satisfação de estar aqui, temos orgulho da vanguarda nesta luta, já que o MP criou a promotoria agrária há 8 anos, para atuar contra a violência no campo. Nenhuma instituição vai conseguir resolver o problema da violência no campo de forma isolada. Se nós não juntarmos os nossos esforços, se não nos unirmos para diminuir o tempo de resolução dos conflitos, a gente não vai chegar a uma solução. Temos que encontrar essas soluções”, propôs o promotor de Justiça Oziel Ferreira Neto.

    No mesmo tom, o presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos, Antônio Pedrosa, falou sobre a necessidade de reflexão para a transformação. “Essa luta não é recente. Nos cadernos de conflitos da CPT, desde 1985, sempre revezaram entre os estados campeões de conflitos os estados do Maranhão e do Pará. É um troféu macabro! É preciso fazer uma grande reflexão sobre isso. Por que esses estados tão ricos são, também, tão pobres? E por que tantos conflitos? São mais de 1 milhão de hectares envolvidos em disputas, enquanto os planejadores oficiais sonham com o MATOPIBA, com o avanço das monoculturas. O direito protege a posse antiga, temos o usucapião. Por que essas pessoas não são atendidas?”, provocou.

    Respostas e compromissos

    Ao fim da audiência, depois das réplicas dos órgãos públicos presentes, como a Secretaria de Segurança Pública (SSP), representada pelo subsecretário Maurício Martins, as entidades da sociedade civil envolvidas na discussão sobre o tema fizeram a apresentação de um documento com sugestões em caráter de urgência, a fim de contribuir com o debate e a adoção de medidas diante da grave crise agrária enfrentada no Maranhão.

    A pauta das entidades traz dados estatísticos organizados, além de propostas específicas para cada órgão responsável. Ao Governo do Maranhão, foram direcionadas 21 sugestões, como a criação da Comissão Estadual de Combate à Grilagem, com a finalidade de investigar a existência de matrículas irregulares nos cartórios de registros de imóveis do estado, realizar o cancelamento administrativo/judicial, a fim de garantir o devido retorno ao patrimônio público do estado e destinação a famílias camponesas.

    Ao Governo Federal, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), foram elaborados 19 pedidos, entre titulações, desapropriação e regularização fundiárias.

    À Fundação Nacional do Índio (Funai), as entidades pediram o aprimoramento e maior celeridade dos processos administrativos de demarcação das terras indígenas, por meio do fortalecimento econômico e de recursos humanos da unidade do órgão indigenista responsável no Maranhão e ampliação do processo de consulta aos indígenas.

    No sistema de Justiça, as proposições foram destinadas ao Poder Judiciário; às Defensorias Públicas do Estado e da União (DPE e DPU); e aos Ministérios Públicos Estadual e Federal (MPE e MPF). A ideia é sensibilizar tais instituições para que haja maior dedicação na luta contra a violência e em favor da proteção de quem vive sob ameaça no campo.

    As entidades da sociedade civil finalizam a redação do documento sugerindo urgência no debate sobre a criação de um Pacto Interinstitucional no Maranhão, que envolva órgãos estaduais e da Justiça, de forma a atuarem de maneira orgânica, sistemática e articulada.

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